quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Indizível (2012)



Capa



Todas as músicas e todas as letras; Bateria e teclados eletrônicos (Piano Eletrônico 4.3); guitarras, violões, baixos, arte da capa e encarte, vozes e sussurros, sangue e suor frios: Juliano Berko. Foto da capa: Marie-Lan Nguyen (Paris, França), "Estátua de Bronze de Giordano Bruno por Ettore Ferrari (1845-1929)", Campo de Fiori, Roma, 2006. Foto Interna: "A Guitarra e A Flor", Sérgio Berquó, 2011. Figura da Contra-capa: "Phalaris condenando o escultor Perillus ao 'Touro de Bronze'", de Pierre Woeiriot de Bouzey (1532-1599). Participação especial em "Te Amo (Como Posso)": "La Belle De Jour".

Diz a história que o escultor Perilo de Atenas quis agradar a Falaris, o tirano de Ácragas, construindo um novo instrumento de tortura e execução de criminosos. O "Touro de Bronze" ("Brazen Bull") era oco e havia uma entrada em suas costas para aprisionar-se a pessoa a ser executada. Um sistema de tubos ligava as narinas do Touro ao interior do corpo, fazendo com que os gritos de agonia do violentado vazassem como "os mais delicados e melodiosos gritos de dor", nas palavras de Perilo, semelhantes ao som de um touro enfurecido. Desgostoso, Falaris, o tirano, ao invés de recompensar Perilo, como este esperava, manda que se teste a invenção no próprio inventor. Isso na Grécia Antiga. Ao longo da história os Romanos ainda usariam instrumentos semelhantes para a execução de Judeus e Cristãos, inclusive de Santo Eustáquio.

E chegamos até aqui. Viva os direitos humanos! Viva o Software Livre e a livre circulação da cultura, arte e conhecimento acumulado na história! Este trabalho é um manifesto humanista, convicto de que a vida só vale a pena ser vivida na luta pelo alargamento dos espaços e das possibilidades de felicidade; que os caminhos que trilhamos, individual e coletivamente, devem tomar este rumo, por mais que, por vezes, sejam tortuosos e até mesmo incompreensíveis aos olhares de outrem, ou ainda confusos para nós mesmos. Nós, que existimos como sujeitos apenas a partir do contato com o outro. Nós, que seguimos esta viagem nesta vida que é breve e em que tudo é possível quando tomamos de volta o nosso poder "delegado", melhor que a verdade seja dita, usurpado. O nosso poder que emanaria, então, não da Constituição, mas de nossa própria, livre e autônoma, psíque, com fins a completa realização dos seres humanos enquanto tais. Os Guaranis chamam de Jejuvy o indizível, a palavra presa na garganta, quando desterrados e deculturados, optam pelo ritual último, o domínio de seus destinos através do suicídio. A eles e a meu amigo Tarcísio, pela palavra presa na garganta, dedico este disco.

Juliano Berko.
Brasília, Out./2012. 
 

01. No Fio da Navalha



No Fio da Navalha

Hoje foi um dia difícil
E a minha vida não tem sido fácil
Acho que estou cheio de vícios
Cheio de medos mal disfarçados
Sinto que estou aprisionado
Sendo escravo de mim mesmo.
Olha, veja só, quem diria...
Ó quem diria não me diga...

Quando baterem à porta
Por favor, diga que eu fui embora
Não veja, não abra, não diga mais nada
Não lembre meu nome, nem o sobrenome
Nem a cor dos meus olhos
Nem o que eu lhe disse

Agora estou fora de perigo
Seguro que estou na cama instável
Durmo e sonho um sonho de abrigo
Enquanto me equilibro no fio da navalha
Desperto, descubro meu corpo ainda frio
Mas antes me reviro de lado a lado
Olha, quem diria que assim seria...
Ó quem diria que não valeu nada?

Quando chamarem meu nome
Corra sem parar, sem olhar pra trás
Não tropece, não caia, não pense em mais nada
Vá o mais longe possa, não interessa onde
Nem quando voltar
Nem porque fiz aquilo.

Hoje foi somente o início
E esse suplício é o preço que pago.

02. O Poeta e A Contradição



O Poeta e A Contradição

Ele era um poeta
Que possuía rascunhos salvos
Em seguros arquivos
No seu banco de dados.
Já não usava o caderno
Pra rabiscar poemas obtusos...
Nem sorria ao cantar
Pois sua voz não cortava o silêncio

Seu tempo era tão inexato...
Estava sempre atrasado
Nos encontros marcados
Seu coração sofria sanção da ONU
Por alimentos e por remédios
Trocava seus versos

Ele era um poeta, se fingia atleta
Em passos pesados
Contrários ao fluxo
Hegemônico do caminho pisado
Ele era um libertário
Que vivia preso
Aos limites e prazos
Do relógio despótico

Seus amores eram tão normais:
Fria burocracia, acordos bilaterais
Suas paixões, sua poesia...
Nos carimbos dos recibos
faltava-lhe tinta!

Adormeça, minha canção
Que eu te farei sem pressa,
E te cuidarei sem medo
De olhar-me no espelho


Ingênuo poeta,
Se fingia alerta, mas vivia em plena
Areia movediça, tragado inerte,
Caiu na armadilha de viver em sonho
Quando tudo era certo e havia por sê-lo
De todo delírio, restou-lhe alguns versos
E poucos desejos

Seu sustento, seus poucos proventos
Iam e vinham ao sabor do vento
E se eu tento convencê-lo a mudar,
Dá-me as costas e se põe a marchar!

Carreguei esta canção por meses na barriga
Dei-lhe vida ao violão
Gestei estes versos imersos no meu ventre
Paridos da minha própria mão
Enquanto eles estão cheios de ideias
Eu não tenho tempo
Enquanto eles estão cheios de teorias
Eu já estou farto
Enquanto eles se arrumam e esperam o salto
Eu não tenho medo
E quando o dinheiro não tiver mais valor
E o amor não for mais propriedade
E quando o céu precisar desabar
E o amar será então de verdade
Quem sabe eu volte atrás
Quem sabe, quem sabe?
Eu rume contra a história
E mate a poesia que houvera outrora?


Ele era um poeta em que a ironia falava
mais alto.

03. Dois


Dois

Dê-me seu beijo, pois, dele eu preciso
E o seu sorriso faz do resto efêmero
Dê-me um tempo, pois, dele eu preciso
Foram imprecisos meus passos até aqui

Vim sem saber o que fazer pra valer a pena
E agora o espelho me condena

Quando um não quer, dois não brigam
Dois não beijam, dois não deixam pra depois
Quando um é dois, três é demais
E agora a paz partiu meu coração

Fique distante e não diga nada
Que suas palavras não fluem no abismo
Eu não preciso deste olhar
Pois, o que fiz foi por haver amor

Foi sem saber o que fazer pra fazer sentido
E agora, solidão, fique comigo

Se o amor é são, o amor em si,
O amor deve ser libertador
Se a dor é sã, ciente de si,
A dor será elemento criador

04. Viagem




Viagem

Se tudo que eu tenho na memória é aquele email
Daquele endereço, o caminho até o meu
Se tudo que tenho na lembrança é o desejo
De tomar pra mim o tempo que se esmaeceu
Se tudo que penso não vai além do que vejo
E tudo por que passei não passou de um sonho meu
A palavra que não deu pra dizer, guardei comigo...
Se é que isso faz sentido

A madrugada é curta
Pra quem vê que a vida
É uma via de mão única
É uma viagem sem volta
É torta em linha reta
É esta rima suja

Se tudo que tento não me leva ao que mereço
E o tempo que passa não desfaz a minha falta
Se entre as coisas que tenho há mais do que preciso
O que eu necessito não tem preço, é imaterial.
Se amor e propriedade carregarem sinonímia
Essa prisão não será mais minha.

Às vezes não durmo à noite, passo noites em claro...
Às vezes não tenho certeza se o que faço é certo
Às vezes parece perto o que esteve tão longe
Às vezes cego meus olhos contra o plano horizonte
Sem saber pra onde ir nem porque estou aqui
Porque será que estou aqui se não queria estar?
Pra onde correr pra salvar o que resta de mim
E, enfim, dizer adeus?

05. Indizível



Indizível

Estão calados enquanto canto
No espaço onde vi caírem tantos
Nas vozes que selaram tratos
Estou parado e a fila anda
Tão distraído com a ciranda
Não vejo a foice ao meu lado
Que ceifa toda hipocrisia
Com seu beijo afiado

O choro da luz - invisível
A dor do silêncio - incurável
Nada do nada - impossível
Laço, laço inquebrantável

Tudo que reluz é ouro
Do que se diz, mas é claro
Que se afoga no raso
Da incompreensão, que é risível

Tudo que digo - indizível

Respeito, é óbvio:
Deixo o relógio na estante
Agora sei do nada que posso
Quis fazer tudo, quis saber tudo,
Quis poder tudo, tudo sozinho
Dizia não querer nada...
Mas pra tudo há uma palavra
Não há qual seja esconderijo...

Chegou o dia em que o brilho pousa em meu ombro
Sem despedida, sem braços eu já não aceno
Não há vacina e o vírus se aloja
Em meu corpo estraçalhado,
Confronta toda medicina
Viverá comigo

06. Pequizeiro


Pequizeiro

Eu te amei sábado inteiro
à sombra do pequizeiro
Como flor, te via sorrindo
Quando vi já era domingo
Tantas coisas que não entendo

Se eu pudesse escolher meu canto
Entregaria o meu espanto
Fosse livre meu instrumento
Não mudaria o que há aqui dentro
Como as coisas perdem o encanto?!

Lembro só do sangue escorrendo
Provava do meu próprio veneno
Ouricei os meus espinhos
Despertei os piores instintos
Se eu pudesse voltar no tempo

Me entrego aos impulsos, de vez em quando
Tudo que sinto discorda do que penso
Entendo ser mesmo do ser humano
O reino do infinito, enquanto impera o momento
Por irromper conflito, logo, fui condenado
Pela liberdade, da qual estivera tão perto
O certo, o errado,
O cerrado.

O fantasma no meu espelho
Agora me assombra o dia inteiro
Vaga feito bicho faminto
Atrás das migalhas do que sinto
Se soubesse como eu tento

Ter amor de corpo inteiro
Ter amor sem machucar tanto
Ter pra mim um amor honesto
Ser sincero comigo mesmo
Evitaria tanto pranto 

Esta sombra a minha espreita
É na minha cama que deita
É o que me veste dormindo
É o que me despe sorrindo
E fugir, eu já nem tento

Me entrego ao escuro dentro do meu quarto
Rememorando fatos, madrugada a dentro
Desconheço os efeitos, compreendo os aflitos
Enquanto imperam os gritos me revolto em silêncio
De tão intenso, fui salvo por um triz
De ter meu peito esmagado pelo peso do que quis
O certo, o errado,
O cerrado.

É mais fácil amar um amor cheio de razão
Difícil é amar sem explicação
(Ouvir o coração)
É mais fácil julgar e condenar sem apelação
Difícil é pedir, conceder perdão
Se amar é em vão.

07. Insuportável



Insuportável

Quem sou eu pra falar de amor
Se todo que tive foi você quem me deu
E agora, todo que tenho é seu?
Quem sou eu pra pedir perdão
Se eu mesmo não me aguento no espelho
E o meu peso é insuportável?
Quem sou eu pra pedir pra voltar
Se eu te deixei uma folha em branco
E te ofereço um rabisco?
Quem sou eu pra dizer tudo isso?
Não é preciso nem me escutar
Está na minha testa...

Pra melhor falar, me calo
Melhor dizer, escrevo
Melhor engolir o choro
E pagar o que eu te devo
Melhor dizer “até logo”
Esconder o meu desespero
Não pedir último beijo
Pagar pra ver já não posso
Melhor parar, eu espero
Nascer de novo o desejo.

08. Te Amo (Como Posso)



Te Amo (Como Posso)

Estive perdido, cheio de medos
Procurava me encontrar
Me diferenciar
De quem mais me pareço

Estive cheio, agora já estou farto
De viver no escuro
De pular o muro
Pro lado errado da prisão

Estive correndo e achava que não
Mas corria em círculos
Estive cheio de vícios
E sem direção

Estive cego e quando olhei no espelho
Não me reconheci
Não gostei do que vi
Por isso este apelo
...

Sem você, tudo perde a graça
Nada faz sentido
Os dias são iguais
E as noites não têm brilho
Desconfio da sua culpa
Pois, tudo em que você toca
Onde quer que você esteja
Deixa tudo mais bonito
Por isso, eu te peço
Reconheça os meus defeitos
Que eu te amo desse jeito
Te amo como posso

09. Buraco do Tatu


Buraco do Tatu

Não tenho mais nada
Não tenho mais nada
O dia, a noite e a madrugada
Tenho os pés no chão
Domingo no eixão
Vento e sol na cara
Que alegria mais barata!
E tenho muitas outras que são de graça.

Não tenho mais nada
Nunca tive carro ou terra
Sou feito de barro
Da lama da baixada
Do verde da vereda
Das areias da Serra
Fui forjado em pedras
Que brotaram das entranhas
Das profundezas da mãe Terra

Quero mesmo é cajuzinho do cerrado
E que o tempo esteja sempre ao meu lado
Quero mesmo é transar na cachoeira
E dançar à noite sob o céu na lua cheia
Quero ser livre pra garantir o meu sustento
E usufruir dos frutos do meu trabalho
Quero minha parte na riqueza coletiva
E dar adeus a este mundo que escraviza

Perdi tanto tempo
Andando na calçada
Sem perceber que o espaço
Era prioridade do carro
E quando havia algum gramado
E algum jardim florido
Não se podia tomar rosas
Não se podia fazer nada
Então percebi que a grama era falsa

Não quero ter mais que ninguém
Não quero ter o que eles têm
E se a ganância vier a mim
Me deixe só com meu fracasso
Me deixe só sendo infeliz
Não seria mais que os outros
Nem seria menos humano
Todos estamos sujeitos
A perecer no que acreditamos

Não tenho para onde ir, mas corro
Pois, a vida é breve como um sopro
Quase sem perceber, corro sorrindo
Pois, hoje o céu faz um dia lindo.
Pois, a vida é uma risada desatada
E a alegria deve ser compartilhada
Tanto quanto o que é produzido
Pelas mãos e gênio, ser humano

E esse silêncio na cidade
Que atravessa as paredes
E vem suspenso no ar
Este murmuro salutar
De que é feito na verdade?
De fato, ruídos de fundo
Que invadem minhas entranhas
Anunciando o fim do mundo...

Alguma coisa acontece no meu coração 
Que só quando a esplanada cruza com o eixão

No eixão, embaixo da Rodoviária do Plano
Há o buraco do tatu
O buraco do tatu 

Na rodoviária do Plano...

“Nossa senhora do cerrado
Protetora dos pedestres
Que atravessam o eixão
às 6 horas da tarde
Fazei com que eu chegue
são e salvo na casa da Noélia”
Nicolas Behr

10. Inaudível



Inaudível

Se eu te disser que eu já vi tudo
Que acontece no esconderijo
Dos deuses que mandam no mundo
Você creria no regozijo?

Se eu disser que sei o caminho
Será que você seguiria
Milhas e milhas ao abismo
Será que você cairia?

LIKE A LAMB OF GOD

Se eu te disser que eu sou hipócrita
Se eu te disser que eu não me importo
Se eu te disser que eu sou seu espelho
Será que você teria medo?

Se eu te disser do pranto ao longe
Da dor de toda dor do mundo
Será que você seria passivo
Ao gemido inaudível?

LIKE A BRAZEN BULL

 

11. Mitomania



Mitomania

Desde quando nasci nunca vi a luz do sol
Flanei quando cai no chão de uma planta industrial
Assim, quando nasci não fui parido de cordão
Me alimentara no tubo de tudo do canal
Nunca tive fome de não saber quê comer
Aprendi a ter vontade de ter quando vi TV
Nas tantas vezes em que morri desde quando nasci
Depois de crescer, eu aprendi a mentir

Aonde levam estas dores que afloram do afeto?
Onde reside minha razão, mãe do meu direito?
Que posso fazer para corrigir o meu defeito
Agora que o gene do mal já está desperto?

O que vi ao longe e que parecia miragem
De repente, veio a mim ou fui a ele, que é verdade?
Cortara minha garganta enquanto a guerra inflamava
A música havia, mas eu não pegara em armas
Então, fugi do campo de batalha
Quando o sol estava baixo, saí sem dizer nada
Expunha minhas entranhas que, alimentadas de anseio,
Perdido o esteio, abandonava-as no convés

Quando quis o que quis, soube o que era a morte
Que cortava o couro e desfiava véu profundo
Onde estava o norte, velho e forte, nunca soube
De tudo que é escrita, só quero o que me cabe
O resto não resumo, sem posse nem repouso
Por dentro, ouso o sentido de pertencimento
Da bolsa que obriga saber como lhe partir
Depois de crescer, aprendi a resistir

Que faço com este canto que tanto pesa no peito,
Com estes versos afoitos que brotam quando escrevo?
Que faço com esta chama que tanto me queima?
Será que o fogo que consome ainda me anima?

Meu melhor ataque foi minha defesa
Quando o sol estava alto, quis sombra e água fresca
A porta que se abria de passagem foi à tinta
De todo minério, quem nunca viu metais?
Cantais todo mantra que se eleva com o fogo
De onde tudo emana, o céu mais que azul
Fui cantar meu sotaque, qualquer coisa ainda tento
Pro tempo que fulmina, tenho papel e caneta

A vertigem sonora que dobrava minha unha
Era tudo que eu queria quando o sol se punha
Essa febre constante que não me mata a sede
Que não me mata o sonho, não sei por que componho
Desta rosa que tanto pesa, feito pluma de chumbo
Não me reste platitude metamórfica de flor
Fui rasgar meus contratos, qualquer canto mais distenso
Talvez ainda pense no tempo mais que perfeito

Só quem sabe como é triste cantar sozinho
Sabe o quão profundo que lhe atinge o espinho
Só quem sabe ver o louco e ouvir seu uivo
Pode saber o que nele ainda há de vivo
Na madrugada fria, quando estiveres na cama
Lembre dele na praça com uns trapos de coberta
Se no manuseio do que corta, um descuido
Encontre teu reflexo na sua ferida aberta

12. O Coração



O Coração 

Escrevo estes versos pelo que resta
Esta caneta que é um espelho
E dedos que são os seus servos
Canto estes versos porque peço
Piedade de minh’alma agora
Que me guiam no mundo olhos de cego
Gestos retóricos que em mim transbordam
E a mim de ti afastam figuras metafóricas
Teço esta linha melódica
Já resignado, pois, cada nota
É uma corda em meu pescoço
E cada corda da guitarra
Lâmina da navalha...

Podem até me condenar
E vão
Podem até me condenar
Com razão
Posso até comer o pão
Que o diabo amassou com o rabo
Ao fim e ao cabo
Certo ou errado, esta canção
É pra fazer o que manda a razão
Quando assim mandar o coração.

13. Aprendiz




Aprendiz


Não quero me arrepender do que fiz
Nem do que deixei de fazer
Responsável pelo seu choro
É seu olho
Do seu sorriso, os culpados,
Seus lábios
Raiz da sua dor
O dente siso
A farejar seu caminho,
O nariz.
Da sua laringe
Nasce o dizer
Não quero me arrepender e ser feliz.
O que o vento trouxer,
Do que vier, escolherei.
Se escorreguei em vidro,
Cicatriz.
Não quero me arrepender, estou vivo
Não escolhi nascer
Amante, amador,
Aprendiz.

14. Benefício da Dúvida




Benefício da Dúvida

Para quando aniquilada a gravidade, a espera
No confronto da matéria, ali só resta energia
Contra toda violência com que o astro gira
Vento a favor da vela, venha o que vier na tela
Nas curvas do espaço-tempo de toda escrita
A fratura que resta do contato com a caneta
De um buraco negro que suga a luz e a tinta
Se preciso for, vermelho sangrará da veia

Condenado a vagar pela eternidade
A elaborar uma estética errante
Sigo atravessando dez mil mares e oceanos
Não busco o que encontro enquanto espero pelo engano
Suspenso pela impostura do calendário
Exilado da ditadura do instante
Do imperioso sentido de responsabilidade
No exercício de uma ética variante
Se eleva sempre mais e vai adiante
Aonde o sol nunca se punha, semente eterna fecunda
É o benefício da dúvida

Para quando arrasada toda a vida na Terra
Da vertigem, o deus que erra, deus do vinho e da guerra
Até mesmo à quimera, ordem criada do caos
Em todo canto do universo, qualquer canto há anos-luz
Do leito que ampara onde desagua a foz
Avista-se o sol esperando a morte sob a cruz
Daqui destes planaltos, testemunhos dos milênios
Nos ossos, titânio; inquebrantável, pois.

Destinado a me desviar de amenidades
A exorcizar os meus demônios, caminhante
Sigo atravessando doze mil rios e lagos
No rastro de lendários monstros gigantes
Assim como o ar é uma mistura de gases
E o carbono, o mais barato diamante
Talvez nem me adiante o devir e procurar resposta
Em outros corpos, beijos castos,
Vastos campos, outras notas
Fluem os canais, abrem-se as portas
Aos amores das musas, o sangue ainda circula
É o benefício da dúvida

A beleza do mistério, a beleza da incerteza
A pedra que traria a mesma se desfez na reentrada
Contaminando a atmosfera com a sua poeira
Os segredos se revelam àqueles que erguem a cabeça
E inspiram a aspereza do óbvio que reverbera
Nas caixas de ressonância, na caixa torácica
Quando dá a noite, dança para além da madrugada
Celebrando a mudança com a chegada do sol

sábado, 10 de janeiro de 2015

15. Miragem



Miragem

I

Sem ilusão de nada
Nem miragem no horizonte da estrada
Sigo em viagem
E as curvas do caminho
Faço sozinho até virarem pó
Estes meus nós

Andando rente às águas
Que ainda correm com a força que não escolhem
Pois, correm léguas
E o vento não dá trégua
No enfrentamento do silêncio
Na passagem à estiagem

No verde da pastagem
Em que corre a morte,
Sem sorte nem paz
Só o tempo traz a dimensão da imagem
Que se diz verdade quando é ilusão:
Adeus poema.

II

Recobrei minha consciência, tomei a vacina da minha doença
A apreensão da realidade só se realiza pela fantasia
O que se chama de modo de vida,
O que se chama de visão de mundo
São ecos do escuro a brilhar na face da Terra
Nos colocando em contato com o espírito das eras

Não anunciarei o apocalipse nem o eclipse solar
Tampouco me presto a esperar que a humanidade colapse
Sob a hecatombe de seu vasto arsenal nuclear
E mesmo o veneno arsênico pretendo não o tomar, assim,
Desautorizando os tentáculos da sociedade do espetáculo
A tentar me cooptar.

O futuro, que é um espaço vazio na linha do tempo,
Um esforço teórico sobre um momento fictício,
Tempo que está contado desde o seu início,
Todos estaremos mortos quando tudo isto
A que chamamos cotidiano não for mais possível,
É um fato dado à nossa escolha
Não deixará de sê-lo mesmo que um de nós morra

Censura, alarme, controle,
O que você escolhe?

FIAT LUX!

III

Sem as burguesas para o meu deleite
Sem as despesas, para o meu acalanto
Sem minhas vestes e outros tantos enfeites
Ausentes os testes e os tantos contratos

Distante dos prantos, dos pratos vazios
Distante da prata, silêncio de ouro
Nem mesmo relógios, momento sem fim
Desprendeu-se de mim o juízo do outrora

Pelo peso que tem, a bagagem ficou
N’algum lugar do passado, esmagada, enfim
De mãos vazias, presentes e gratas
Já ausente meu couro, posto em carne viva

Adentro a casa do senhor do aguadouro
E no espelho d’água, em que até então não me via
Me vejo refletido
E, do futuro, eu digo adeus.

Muito além de palavras, pra ser verdade
Há uma longa viagem

IV

Ouça o som do silêncio
Esqueça o som da saudade
Sinta o som do sereno
Esqueça o som da cidade
Sonhe o sonho do são
Verse na sua versão.